Women Talking
Women Talking, ou Conversa entre Mulheres no título em português, é um filme baseado numa história real ocorrida na segunda metade dos anos 2000 em uma aldeia de religiosos menonitas ultraconservadores em área remota da Bolívia. Só os meninos recebiam educação formal desde a infância; meninas não podiam estudar, deviam manter-se analfabetas e ignorantes de tudo, a não ser dos cuidados domésticos e maternais. No período citado acima, várias meninas ainda na infância e mulheres jovens começaram a acordar pela manhã com sangue escorrendo entre as pernas e escoriações pelo corpo, sem ter lembrança de nada do que havia acontecido durante a noite. A princípio tais ocorrências foram tidas como um mistério e uma possível obra do demônio, porém com o passar do tempo as mulheres tiveram a certeza de que estavam sendo estupradas por homens da própria comunidade. Estes, por sua vez, diziam-lhes que estavam possuídas ou que eram histéricas, unindo-se entre seus pares nessa versão. Até que uma menina testemunhou um dos agressores fugindo por uma janela do quarto de uma vítima. Esse agressor revelou comparsas, que foram levados à cadeia da cidade mais próxima. Descobriu-se que as mulheres eram sedadas antes do ato e assim não se lembravam de nada.
No filme, após alguns dias todos os homens que restaram na aldeia partiram para resgatar da prisão seus companheiros, recusando-se a abrir precedente às mulheres. Estas, durante sua ausência, resolveram se reunir em conferência para discutir o que fazer com a situação. Partiram de três posições para a resolução, que devia ser consensual: ficar e aceitar resignadamente o que os homens impunham; ficar e lutar por respeito e direitos; abandonar a aldeia antes que os homens retornassem – isso aconteceria em 48 horas.
A partir daí o filme se desenrola, tendo como foco a votação em uma das propostas e em seguida a conversa em busca de consenso. No grupo de discussão há representantes de todas as gerações, de crianças a anciãs - todas devem ser ouvidas e consideradas. Uma trama existencial densa vai se formando, onde vão se revelando e desvelando sofrimentos, reflexões, religiosidade forte e questionamentos sobre Deus; pena dos homens, perdão, raiva, revolta, compaixão, resignação, uma miríade de emoções e sentimentos; momentos de riso e brincadeira (tão cruel situação que de tão insuportável precisava por momentos desse escape, necessário e que dá respiro à alma dilacerada), outros de conflitos, crises de ansiedade, brigas, acusações e julgamentos entre si, outros ainda de ponderação – sobretudo pelas mais velhas –, e volta à união. As meninas mais novas falavam pouco, mas quando o faziam traziam insights importantes.
Muitas outras coisas interessantes há no filme, não vou dar spoilers, vale a pena conferir e mergulhar nas camadas que ele traz e na trilha sonora minimalista da jovem compositora Hildur Guonadóttir – grata descoberta -, que adiciona mais densidade e complexidade à trama.
O fato na Bolívia aconteceu “ontem”, e hoje ainda temos tanto a mudar nesse aspecto. Muito embora escolaridade e direitos das mulheres tenham sido conquistados, ainda há muito caminho a percorrer. Temos que ir em frente! Em todos os cantos do Brasil o abuso e assédio de meninas e mulheres ainda ocorre nas casas, no transporte público, mas também nas corporações e locais diversos de trabalho, bem como com crianças em diversas circunstâncias. A maioria das mulheres ainda permanece calada, por medo de ficarem sós, ou serem retaliadas pelo “parceiro” ou agressor, perder o emprego e seus meios financeiros de sobrevivência. Muitas crianças também não falam porque são ameaçadas por seus algozes (com frequência da própria família), ou quando têm coragem de contar às mães estas muitas vezes preferem acobertar a situação – igualmente por medo. Esse filme e a situação das mulheres atualmente me faz lembrar a epígrafe do livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir: “Metade vítimas, metade cúmplices.” É preciso ousar denunciar mais!
Qual terá sido a resolução da conversa? Vai lá ver.