O Corpo é o Pensador

“Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido — e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo.” F. Nietzsche

Nosso corpo tem uma capacidade enorme de saber o que é bom para nós e guiar nossos passos. Basta que o escutemos e que o deixemos ser o pensador espontâneo que é. Isto, para a maioria de nós, é um grande desafio, mas pode ser aos poucos despertado e conquistado. Nossa racionalidade exacerbada, a “torre de controle” — como a chamo -, aprende desde a infância a encobrir essa sabedoria corpórea até soterrá-la; o corpo abaixo da cabeça acaba servindo apenas para “choferar” nosso cérebro (parte nobre!) por aí e obedecê-lo. Ai do corpo se tiver uma dor de cabeça, um torcicolo, uma dor lombar, alguma depressão ou ansiedade: remédio nele e que se cale! Não podemos parar nosso corre-corre não se sabe bem para aonde…

Bem antes de manifestar uma patologia ou disfunção mais séria, o corpo nos dá sinais de que algo não vai bem. Alguns alertas frequentes são tensão e rigidez, dores, respiração curta, entrecortada e tensa, “maus-jeitos” frequentes, cansaço, insônia ou sono irregular, stress excessivo e irritabilidade, ansiedade, desânimo, depressão incipiente, a lista é extensa… Sim, no corpo estão registrados também nossas emoções, sentimentos, conflitos, assuntos não resolvidos, sonhos não perseguidos…

Se não escutamos os sinais — seja pelas couraças que os encobrem e não percebemos que temos, seja por termos outras prioridades e preferirmos nos medicalizar e ir levando — não fazendo a nossa parte para auxiliar o corpo a recobrar o equilíbrio, ele tenta sozinho livrar-se das dores, desconfortos, conflitos, insatisfações e emoções perturbadoras. Faz isso tensionando-se mais ainda ou adaptando sua postura e entortando-se, assim encobrindo a primeira dor. Diminui sua amplitude respiratória com o mesmo intuito — respirar menos equivale a sentir menos. Mas o ciclo se reinicia e uma nova dor ou outros problemas orgânicos aparecem. Se continuamos alheios, esse mecanismo torna-se um círculo vicioso.

Ao longo do tempo nossas fáscias (grande órgão dos sentidos) e músculos vão se tornando desidratados, espessos, sem elasticidade e duros como pedra, verdadeiras carapaças. Nesse estado, constringem nervos e vasos sanguíneos (causando dores e dificultando a oxigenação dos tecidos), comprimem as articulações (facilitando o aparecimento de artroses e hérnias discais), diminuem a mobilidade e travam nossa estrutura. O que nos faz ainda mais ansiosos, estressados, depressivos, irritadiços, desanimados, desvitalizados, com oscilação de humor. E vice-versa, os dois aspectos se retroalimentam e são duas faces da mesma moeda!

Temos também a tendência a exagerar no uso da sobrecarga quando fazemos fortalecimento muscular, ou a fazer atividade física demais, como forma de ter um corpo bem na foto dos padrões atuais de “beleza”; mas também, sub-repticiamente, para podermos dar conta de tanta sobrecarga e desproporção na vida que levamos — em vez de encarar o assunto e mudar nosso modo de viver, descontamos no corpo e mantemos o status quo.

Infelizmente ainda vivemos em uma cultura predominante de “malhação” do corpo — e da vida -, que não corresponde àquilo de que necessitamos para estar bem. Costumamos exigir-nos, irrefletidamente, de uma maneira que nos faz sofrer e nos machucarmos mais. Assim também com a imagem que queremos mostrar profissionalmente e na vida pessoal, com nossa exigência de poder resolver e dar conta de tudo, de saber mais que os outros, de nos mostrarmos “fortes” e “bem”-sucedidos. Estamos, a maior parte do tempo, “esticando demais a corda”.

O pensar do corpo aparece quando voltamos nosso sentir consciente para as percepções corporais, o que inclui nossas emoções e sentimentos, e nos deixamos guiar por eles. Ele é a percepção corporal.

Só quando realizamos práticas físicas e atitudes de vida a partir dessa escuta é que realmente podemos descobrir a dose adequada de exercício, a força justa a ser feita, o alongamento que faz bem e até aonde podemos ir nas exigências com nós mesmos em todas as áreas da vida; perceber aquilo que nos corresponde em cada momento, aquilo que nos faz bem e aquilo que nos machuca. Assim damos ao organismo a chance de exercer seu motivo de ser: se organizar. Calar o pensador racional e dar espaço ao pensador corporal, esse é o aprendizado essencial.

Na área da saúde, hoje sabemos que a interocepção — que é basicamente o sentir e perceber consciente de nossos estados internos — é fundamental para o aprofundamento de qualquer prática corporal e psicológica, pois colabora com a regulação homeostática de todos os nossos sistemas, sendo fundamental nos processos de cura.

A Dra. Lily Ehrenfried, criadora de um dos métodos com os quais trabalho — a Ginástica Holística -, costumava dizer: “O corpo humano possui uma tendência ordenadora que ajuda a recolocar tudo em seu lugar, desde que lhe seja dada a mínima possibilidade”.

Esse potencial está em nós, basta concretizá-lo.

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