Observações de uma ciclista urbana
As ciclovias como um espelho de nossa humanidade nos tempos atuais.
Pouco tempo depois das bicicletas elétricas começarem a aparecer em São Paulo, adquiri uma e mudei meu modo de transporte para o trabalho e outras atividades. A convivência no microcosmo das ciclovias me ensinou muito a respeito de nós, humanos do século XXI, numa megalópole como São Paulo.
Apesar de muitos acharem que o fato de alguém trocar o carro pela bicicleta seja algo cool de pessoas igualmente cool, que além de serem mais sensíveis às questões ambientais procuram uma vida menos estressante, mais harmoniosa, menos acelerada, que curtem o caminho quando estão se dirigindo a seu ponto de chegada, que têm mais atenção e consideração ao próximo, minhas constatações mostram o oposto. Diariamente vejo pessoas egoístas, arrogantes, competitivas, disputando poder e totalmente alheias à presença dos demais.
Basicamente, encontramos três perfis-tipo nas ciclovias: os ciclistas que as utilizam para se deslocar até o local de trabalho e de volta para casa — ou para realizar outros afazeres –, aqueles que pedalam para passear (alguns desses são de fato cool) e os que as percorrem para se exercitar de modo mais enérgico. Uma parcela considerável destes últimos utiliza as ciclovias como pista de treino; a velocidade em que circulam é absurda e tudo o que veem são os obstáculos a superar e deixar para trás o mais rápido possível, a fim de não atrapalhar seu treino. Esses obstáculos são os outros ciclistas e principalmente os pedestres. Suas ultrapassagens são perigosas e não importa que se deparem com um sinal vermelho: só atentam aos carros na rua e, caso nenhum os esteja ameaçando, furam o sinal desconsiderando totalmente os pedestres que estão em seu direito de travessia. Entretanto, se encontram com algum carro obstruindo sua via, ralham com o motorista e são extremamente grosseiros, apontando sua falta de respeito aos ciclistas.
Já o ciclista que utiliza as ciclovias para o que de fato são destinadas, a locomoção de um ponto a outro da cidade, é aquela pessoa que está sempre querendo chegar rápido ao seu destino, acelera demasiado o pedal, via de regra está com fones de ouvido, faz ultrapassagens perigosas e não respeita os limites de sua faixa. Igualmente aos atletas, não enxerga os pedestres e é agressivo se algum carro está momentaneamente interrompendo a ciclovia.
Esses dois tipos parecem ter antolhos nas laterais da cabeça, seu campo de visão é estreito e limitado à cenourinha que estão perseguindo.
É claro que há também os ciclistas atentos não só a si mas a tudo e todos a sua volta — porém são espécie rara.
Diariamente me surpreendo com a reação dos pedestres quando paro no sinal vermelho para que atravessem tranquilamente pela faixa: via de regra desaceleram ou estancam os passos, olham-me com fisionomia de total espanto, em seguida agradecem, abrem um largo sorriso e retomam seu caminho.
Outra situação frequente é a competitividade quando se é ultrapassado por outro ciclista, principalmente se uma mulher ultrapassa um homem, mas não só. O cara não sossega enquanto não tomar novamente a dianteira em algum ponto logo à frente — mal consegue disfarçar.
Parece-me que as ciclovias refletem de maneira concentrada o estado adoecido que nos acomete a todos, em maior ou menor grau, nestes tempos em que tudo tornou-se efêmero, descartável e ligeiro. É uma época de aceleração máxima, preenchida por estímulos vindos de todos os lados, solicitações incessantes que se impõem a cada dia, no real e no virtual, não nos permitindo o olhar cuidadoso e detido a nada e a ninguém. Querendo tudo controlar com medo de perder alguma coisa, os assuntos e as tendências do momento nas redes, os likes e os seguidores, a posição e a promoção no trabalho, o poder aquisitivo para novos consumos e mais status — sobra muito pouco espaço para a percepção de si mesmo, a reflexão, o olhar atento aos outros, o respeito, os pequenos gestos cuidadosos, o compartilhamento verdadeiro.
Algumas ideias do sociólogo Zygmunt Bauman (1925–2017) ajudam a compreender um pouco o que acontece conosco atualmente. Um dos principais desdobramentos de seu conceito “modernidade líquida” (nosso tempo atual) refere-se à efemeridade das relações humanas, a nosso empobrecimento existencial: “Vivemos em tempos líquidos, nada foi feito para durar”, diz. Nossa vida se precarizou e estamos em condições de incerteza e insegurança constantes, o que faz com que estejamos sempre em estado de alerta, tentando nos manter no controle para não perecermos ou sermos excluídos, cancelados. Assim, amar, criar laços íntimos e ser cuidadoso com o outro passam a ser atos arriscados, pois nos coloca em posição desprotegida e vulnerável. Desse modo, o contato entre as pessoas passou a ser muito mais pautado por interesses egoístas, praticidade e competição; o outro se tornou um estranho que só nos serve momentaneamente para a satisfação de desejos e como ponte a nossos objetivos individualistas — virou uma coisa a ser consumida e descartada. Segundo o autor, os relacionamentos se tornaram “relacionamentos de bolso”.
Hoje, segue Bauman, o desenvolvimento tecnológico mudou drasticamente o modo de nos relacionarmos uns com os outros: não se criam mais laços aprofundados e duráveis entre as pessoas, apenas conexões. A maior parte de nossas relações se dá nas redes, e nelas plugamos e desplugamos os outros conforme a conveniência. Não mais fazemos parte de uma comunidade com a qual temos que conviver e nos haver, em que nos sentimos responsáveis por nossos atos e relações, da qual não podemos escapar quando a primeira dificuldade se apresenta; nas redes só nos conectamos a quem queremos a cada momento, não devemos respeito nem consideração a ninguém, pois basta apertar uma tecla para nos livrarmos de quem quer que seja. Esse modo de relação acabou por contaminar também as relações presenciais, em quase todos os ambientes além das ciclovias.
Na mesma linha, o filósofo Byung-Shul Han diz que vivemos em uma sociedade cada vez mais narcisista; as pessoas investem toda sua energia na própria subjetividade, “são incapazes de reconhecer e aceitar os outros em sua alteridade”.
Torço para que possamos nos dar conta desse estado de coisas e que decidamos fazer algo a respeito. Torço para que retiremos nossos antolhos não só na ciclovia mas em todos os contextos de nossa vida, que criemos mais laços e menos conexões fugidias, que possamos competir menos e compartilhar mais, apreciar o caminho e respirar — descobri durante meus pedais que na cidade há muitas amoreiras e pitangueiras. Que no lugar de esperarmos e nos regozijarmos com a enxurrada de likes virtuais, passemos a valorizar mais dar likes às pessoas com quem encontramos nos espaços físicos de nosso cotidiano.